quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A garota da minha vida - Capítulo 8


Capítulo 8

SAMUEL

Autor: Thales Mendes

O Ben continuava me olhando, meio nervoso com meu silêncio. Eu retribuía o olhar dele, mas acho que nós dois sabíamos que eu não estava, de verdade, naquela sala. Meu pensamento ia longe, com as palavras do Ben martelando na minha cabeça, indo e vindo, e eu tentando entender o significado delas. Quer dizer, a Clarice tinha ido à casa do Lucas. E daí? Eles são amigos, não são? Não. Na verdade, nós somos amigos. Ou éramos. Quer dizer, ele só conhece a Clarice por minha causa…


Isso tudo tá muito estranho. O Ben aqui, na garagem da própria casa, me contando o acontecido em voz baixa, gaguejando, com medo, como se estivesse cometendo um grande pecado, como se tivesse visto os dois se beijando, ou quase isso. Absurdo. O Lucas jamais faria isso. E a Clarice também não. Quer dizer, eu sei que a gente não está mais junto, e tal, mas ela nunca me pareceu ser do tipo vingativa. Do tipo “a gente termina e eu fico com o seu melhor amigo”. Isso não combina com ela.

Então, por que essa vozinha estranha insiste em ecoar na minha cabeça? Ela tá aqui, baixinha mas constante, me dizendo que alguma coisa soa estranha nessa história toda. Me dizendo pra investigar. Sugerindo que, talvez, meu melhor amigo e minha namorada estivessem tirando onda com a minha cara. Se divertindo às minhas custas.

- Bom, eu não sabia se devia ter te contado, sabe, mas, bom, ela fez uma cara estranha ao me ver, sabe, parecia com medo de alguma coisa, ou surpresa, ou…enfim, eu fiz bem em te contar, não fiz?

- Mandou bem, Ben – eu disse, e ele sorriu, meio aliviado porque, sempre que eu falava aquela frase, era sinal de que tava tudo bem entre a gente.

- Então, você acha que…?

Ele se calou ao ver o meu olhar. É estranho como, às vezes, as palavras não ditas são justamente as que eu entendo melhor.

Eu queria falar “Não, Ben, é claro que não acho, cara”, mas tinha aquela voz na minha cabeça. E tinha, também, a voz do Ben, dizendo que a Clarice parecia surpresa, parecia com medo… medo de quê?

- Ei, Ben, não me leva a mal, cara. Mas eu preciso ir nessa, ok?

- Ah, claro – o Ben disse, levantando-se imediatamente, e parecendo muito mais aliviado de poder encerrar aquela conversa constrangedora . Antes de eu sair, no entanto, ele ainda me olhou com uma expressão meio triste, e disse: – Escuta, não vai fazer nenhuma besteira, tá?

Eu sei que ele só estava querendo me ajudar, mas aquilo me enfureceu. Mais do que qualquer outra coisa, mais até do que a possibilidade do Lucas e a Clarice estarem juntos, foi o jeito que o Ben disse aquela frase, como se todas aquelas hipóteses já fossem uma realidade: “Ei, Samuel, não vai perder a cabeça, como você sempre faz, só porque sua namorada te traiu com o seu melhor amigo, tá bom?”

Felizmente, ele pareceu perceber, pela minha expressão, que eu estava pensando em  voltar até a sala, pegar o copo d’água que tava em cima da mesa,  e jogar nele (não só a água, mas o copo também), e fechou a porta antes que eu tomasse a iniciativa.

É bom ficar sozinho. O silêncio ajuda a pensar.

Lucas e Clarice. Será?

Comecei a rir, enquanto caminhava de volta pra casa.

Aquela situação era improvável demais pra eu sequer considerá-la: era do Lucas que eu tava falando, aquele moleque jamais faria alguma coisa assim comigo, mesmo que a Clarice se jogasse em cima dele e implorasse. E não é só porque ele é meu amigo: ele é um cara bacana, mesmo, desses que vê a plaquinha e evita pisar na grama, que só atravessa na faixa de pedestre, e tal. Pô, se o cara não consegue nem matar um mosquito sem se sentir meio culpado, vai ficar com a minha garota assim, sem mais nem menos?

Além disso, ele não fica com qualquer garota. Não que a Clarice seja qualquer garota, lógico, mas é que ele precisa realmente estar gostando da pessoa, pra ficar com ela. Eu sei, porque eu já tentei, milhões de vezes, fazer com que ele ficasse com algumas meninas nas festas, pra ver se ele deixava aquele jeito meio bobão de lado, até que desisti. Dá até pra ouvir a voz dele aqui do meu lado, sorrindo, dizendo “relaxa, Muca, eu não sou santo, cara, mas também não vou sair por aí ficando com qualquer garota, sem nem saber o nome dela”.

É, tudo isso deve ser um grande mal entendido. Não duvido que a Clarice tenha ido à casa dele, porque o Ben jamais inventaria uma coisa dessas, mas há milhões de razões pra ela ir até lá, né? Não há nada que a impeça, nem nada que o impeça de recebê-la. Vai ver ela foi lá porque estava se sentindo mal, ou porque eles mal se falaram depois de tudo o que rolou, ou pra ver porque ele saiu correndo da casa do Ben no último ensaio, ou…

- O que a Clarice tava fazendo na sua casa hoje?

Era tarde, eu sei, mas o Lucas sempre me atendia. Dessa vez, ele tava com a voz de quem já tinha ido dormir, e por isso precisou de um tempo pra entender o que tava acontecendo.

- Muca?

- Sou eu. Beleza?

- Beleza.

- Então, o Ben viu a Clarice saindo da sua casa hoje.

- Sei.

- O que ela foi fazer aí?

- Conversar.

- Sobre o quê?

- Sobre o que você acha, Samuel? Sobre vocês.

- Ah é? E por que ela não conversa comigo?

- Foi o que eu perguntei. Ela disse que não consegue, que tentou e desmaiou, essas coisas de sempre. E disse que você também não a procurou, então…

- Entendi – eu disse, ficando aliviado e começando a rir, mentalmente, de todo aquele ciúme. Precisava me lembrar de jogar a água no Ben (só a água, dessa vez) pra ver se ele para de colocar minhocas na minha cabeça. – Vem cá, como ela tá?

- Oi?

- A Clarice. Tá triste?

- Tá. Claro. Triste. Confusa. Sei lá.

- Sei.

- Por que você não conversa com ela, Samuel?

- É, acho que vou fazer isso – eu deveria ter feito isso aquela tarde, com o Ben me sugeriu, mas acabei ensaiando a tarde inteira e perdendo a noção do tempo.

- Ótimo. Agora me deixa dormir.

- Beleza, carinha – eu disse, começando a rir – Volta lá pro seu sono da beleza. E obrigado pelas boas notícias.

- Como assim?

- Não, nada, é que há uns minutinhos eu tava bravo, pensando umas coisas…

- Pensando o quê?

- Umas coisas que o Ben disse. Nada de mais.

- Fala logo, cara.

- Pensando que você e a Clarice tinham ficado.

Eu não sei por que disse aquilo, e daquele jeito, ainda por cima. Não tinha motivos para desconfiar do Lucas. Ele tinha respondido todas as minhas perguntas, e eu estava plenamente satisfeito com as respostas. Acho que aquela fala foi obra da vozinha na minha cabeça. “Só pra garantir, Samuel”.

Do outro lado da linha, silêncio.

- Lucas?

- Oi.

- Você ouviu o que eu disse?

- Ouvi.

- E aí?

- E aí o quê?

- Você e a Clarice ficaram?

Perguntar aquilo, em voz alta, deixou a situação toda muito mais absurda. Ali estávamos nós, dois amigos, conversando no telefone, e eu perguntando pra ele se tinha ficado com a minha garota. E ele desligando, sem sequer me responder. Ele devia estar revoltado. Dá pra entender, é claro, eu também ficaria.

Peguei o telefone pra ligar de novo. Ia me desculpar, dizer que só tava brincando, sei lá. Comecei a discar o número dele, e me assustei com o meu celular vibrando na minha mão. Era o Ben. Atendi, pensando que deveria ter esquecido alguma coisa na casa dele, pensando que poderia pegar amanhã, ou qualquer outro dia, em qualquer outro ensaio, pensando que tinha coisas mais importantes pra resolver:

- Alô?

- Samuel, cara!

- Que foi, Ben?

- O que você tem pra fazer no sábado que vem?

- Como assim?

- Sábado que vem!

- É o nosso show, não é?

- É!

- Então, eu tenho um show no sábado que vem.

- Pode crer que você tem! Todo mundo tem. E sabe quem vai?

Ele me contou quem ia. Aparentemente, o Ben tem um amigo que conhece o Tuca Barbosa, um produtor badalado que vira e mexe tá nas revistas ao lado de bandas de sucesso. E aí o Ben, sem falar com ninguém, mandou uma tape do nosso som pra esse amigo, que mandou pro Tuca, que curtiu, que perguntou quando é o nosso próximo show. E que acabou de confirmar a própria presença. Parece que ele estava atrás de gente nova. Parece que tinha achado que a nossa banda, que nem nome tinha, acabou, “se encaixando no perfil” que ele procura. Ele queria nos conhecer.

Minha cabeça começou a girar. O Ben, na linha, gritava um monte de coisas aleatórias, e eu só conseguia ouvir palavras como “irado!” e “animal!” e “Lana, sai daqui, tô no telefone!”. Era a terceira conversa que a gente tinha no mesmo dia e, de longe, a melhor e mais importante pra mim. Era o meu sonho se realizando. Ou, pelo menos, começando a se realizar. Pra que ele se realize de verdade, eu preciso ensaiar. Preciso aprender. Preciso ser perfeito. Não posso me distrair, não agora. Varri os meus problemas da cabeça: encontraria o Lucas no dia seguinte, e a gente conversaria. A Clarice, bem, teria que esperar mais um pouco.

Eu cheguei em casa, tirei a roupa e fui direto pra cama.

Eu não sei quantas vezes a gente consegue falar isso na vida, mas é a primeira vez que eu falo, de verdade, na minha:

O meu momento chegou.

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