sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A garota da minha vida - Capítulo 9

Capítulo 9

EMILY

Autoras: Hadassa Fentanes e Júlia Barbosa


Como é possível manter distância de quem você mais odeia se ele é seu vizinho?

Eu odeio o Lucas. Aquele cabelo castanho desarrumado dele. Aqueles olhos castanhos escuros. O som da sua risada. Simplesmente não suporto aquele garoto.

E lá está ele, na casa ao lado, vivendo sua vidinha feliz e completamente irritante. Como qualquer um consegue aguentar ficar perto dele?

E como se ser meu vizinho não fosse o suficiente, agora ele inventa de trazer aquela garota insuportável, a Clarice, quase todo santo dia, pra sua casa. O que será que tá rolando com aqueles dois? Só de pensar, fico enjoada. As visitas da namoradinha do Samuel ficam cada vez mais frequentes, e isso está me dando nos nervos.

E por falar no Samuel, eu acho que o cara pirou de vez. Primeiro, ele anda todo irritadinho porque terminou com a namorada. Agora, depois do ensaio que ocorreu mais cedo, ele manda eu fazer uma música pra gente tocar na apresentação de sábado, sendo que hoje é segunda-feira! Segunda-feira! Faltam só cinco dias! Como ele espera que eu faça essa proeza?

Definitivamente, as pessoas me irritam.

O ensaio na casa da Lana e do Benjamin termina e eu vou direto pra casa. Ao parar na frente do portão para pegar as chaves, vejo Lucas voltando do trabalho com seu uniforme da lanchonete.

- Você fica ridículo com essa roupa - falo, enquanto ele para pra abrir o portão.

- Emily, adorável como sempre - ele retruca com um suspiro.

- Cadê a sua namoradinha? Ela já deve estar vindo, não é? Ela costuma vir a essa hora - digo, com um tom de irritação.

Ele cora levemente.

- Qual é o seu problema comigo? - ele pergunta.

- O Samuel já sabe o que tá rolando? Porque eu acho que ele vai ficar muito feliz em saber.

- Isso não é da sua conta.

- Ah, você não está negando.

Ele suspira de forma exagerada e empurra o portão pra dentro.

- Tchau, Emily - ele fala, enquanto caminha para o quintal.

Uma pontinha de culpa me invade.

- Espera! - grito, e ele para. Lucas se vira pra mim e me encara com frustração.

Eu o encaro de volta, e meu coração acelera. Fico totalmente sem palavras. O que está acontecendo comigo?

Pra disfarçar, dou um sorrisinho.

- Você é mesmo tão burro pra acreditar que ninguém percebeu ainda?

Então entro em casa antes que ele possa responder.

O que foi aquilo? Decido não pensar nisso no momento.

Fecho o portão atrás de mim e vou marchando pra cozinha. Minha mãe deixou um bilhete na porta da geladeira me mandando esquentar a comida e dizendo que hoje vai ficar até mais tarde no serviço.

Resolvo comer a comida fria mesmo. Nunca entendi direito como aquele micro-ondas funciona. Da última vez que tentei usar, a embalagem do meu sanduíche pegou fogo, então decidi nunca mais me meter com ele. Pego o prato em cima da mesa, vou pra sala e me jogo no sofá, mas antes, ligo o som e coloco uma música aleatória pra tocar.

Quando termino de comer coloco o prato no chão e fico tentando pensar. A banda precisa de uma música nova para a apresentação. E, como as letras que a Lana insistia em compor geralmente tinham arco-íris, animais falantes e paetês, o Samuel não tinha paciência pra isso e o Benjamin, bem, ele não faz nada, nunca; eu acabo ficando sempre responsável por essa parte. Mas é impossível pensar em alguma coisa coerente se eu só consigo ouvir risadinhas vindas do outro lado do muro.

Provavelmente a Clarice já tinha chegado e eu não tinha percebido. Aumento o volume do som.

Hoje não. Hoje vou ignorar tudo que vier do outro lado.

Deito no tapete e tento pensar. Pensar, pensar, pensar...

– Emily, por que você está no chão?

Acordei e vi minha mãe me olhando confusa. Já era muito tarde.

– Eu dormi sem querer.

– E esse som alto? Meu Deus! E o prato no chão? Alguém poderia pisar e...

– Eu esqueci, calma. – peguei o prato e coloquei na pia em cima do monte de louça suja que eu colecionava.

Dei um passo pra trás e, com as mãos na cintura, observei minha incrível torre de pratos.

– Você lavou a louça? Essa semana a louça é sua. Não esquece!

Minha mãe nunca entendeu minha lógica de que se ainda tem pratos no armário, não precisamos lavar a louça, é perda de tempo. Mas decidi não entrar numa discussão e fui pro meu quarto.

Me arrastei até a cama, desejei boa noite pra Luna, a minha aranha, e apaguei. A Luna era a minha tarântula de estimação. Ela era muito preguiçosa, mas ótima para assustar as pessoas.
Acordei com a luz do Sol que entrava pela janela. Era tão forte que me fazia chorar. Eu tinha esquecido de fechar as cortinas ontem. Droga. Peguei o celular para conferir as horas e vi que já estava atrasada. Troquei de blusa, peguei a mochila e o dinheiro do ônibus.

– Mãe, tô indo!

Corri até o ponto bem a tempo de ver o ônibus se preparando para partir. Gritei e acenei feito louca e finalmente ele parou. Consegui entrar no bendito veículo e dois pontos depois cheguei na faculdade.

Corri até minha sala e quando entrei várias pessoas olharam pra mim. Era realmente chato andar por aí com as pessoas me encarando por causa da maneira como eu me visto ou me arrumo. Quero dizer, preto é a minha cor favorita, então e daí se eu quiser usar preto o tempo inteiro? As pessoas fazem o que gostam, certo? Como se eu precisasse de permissão pra fazer isso.

Como eu já disse, as pessoas me irritam.

Tentei agir com naturalidade enquanto ia até um lugar vazio e fazia o trabalho de casa que devia ter feito semana passada.

O resto da aula foi o de sempre: professores emburrados dando matérias confusas e esperando que a gente dê conta de tudo (ou não, sempre desconfiei que a professora Rosana queria que eu fosse reprovada logo pra não ter mais que me aturar). Anotei as coisas que considerei mais importante e tentei sobreviver até o fim das aulas.

Como a faculdade não era tão longe, resolvi ir pra casa andando. No caminho, meu celular tocou.

– Emily?

– ...

— É a Emily?

– Hmm...

– Ah, agora sei que você tá aí. Conseguiu a música nova?

– Hm-hm.

– Tudo bem, mas precisamos dela pra amanhã. Por favor, vê se consegue. Liguei pra avisar que hoje não vai ter ensaio.

– ...

– Tá aí?

- Entendi - e desliguei o celular. Quem era? O Benjamin? O Samuel? Ah, quem se importa?

Voltei pra casa e passei a tarde estudando para o teste do dia seguinte. Sentei na sala e enfiei a cara nos livros, com a minha tarântula de estimação, Luna, no colo. Pra falar a verdade, fiquei bem aliviada por não ter ensaio à noite. Assim, pelo menos, eu poderia ter um pouco de descanso, pra variar.

Ah, é, ainda tinha a música da apresentação pra fazer. Droga.

Bem, a música podia esperar.

Depois que terminei de estudar e ajudei minha mãe com a janta, me sentei do lado de fora, aproveitando a brisa noturna, coloquei os fones de ouvido e já estava escolhendo uma música, quando vozes do outro lado do muro chamaram a minha atenção.

- O que estamos fazendo, Lucas? - essa voz fininha e harmoniosa era irritantemente familiar.

Então, uma voz mais irritante ainda respondeu:

- Eu achei que você gostasse de vir aqui.

- Não foi isso o que eu quis dizer.

Silêncio. Alguma sensação estranha tomou conta de mim, algo que eu não conseguia definir bem o que era.

- Foi um filme na minha casa, uns encontros na sua, uma ida ao cinema... - Clarice continuou. Como a voz dela podia ser tão irritante? - O que tudo isso significa?

Lucas suspirou.

- Você sabe - ele diz, como se tivesse tido uma explosão de coragem - Você sabe o que eu sinto.

Eu não estava gostando do rumo daquela conversa. Aquela estranha sensação voltou de novo, agora com mais intensidade.

Clarice ficou em silêncio, pra variar. Devia estar chocada demais. Mas então, ela disse finalmente:

- Eu não acho que o Samuel... - ela começa, meio gaguejando.

- A questão aqui não é o Samuel - Lucas falou, com firmeza. De onde veio aquela ousadia toda de repente? - A questão é o que você sente.

Não, não, não. Aquilo estava indo longe demais. A sensação agora era de pura raiva, ou talvez misturada com mais alguma coisa, e estava me queimando por dentro. Eu tinha que fazer alguma coisa.

Peguei uma cadeira que estava na varanda e coloquei silenciosamente encostada no muro.

- Não é o Samuel quem toma conta de nossas vidas. Somos nós - ele disse baixinho, enquanto eu subia na cadeira e olhava por cima do muro baixo que separava a minha casa da daquela criatura odiosa - E eu preciso saber. É só... dizer e mais nada. Mas eu preciso saber.

O Lucas, aquele garoto estúpido, olhava intensamente para a Clarice, sem nunca desviar o olhar. Sua expressão era uma mistura desorganizada de sentimentos que eu me sentiria enjoada só em listar todos eles. Mas a expressão da Clarice era indecifrável. Eu não fazia ideia do que ela estava pensando naquele momento, mas eu sabia que tinha que interrompê-la antes que dissesse o que quer que estivesse prestes a dizer.

E de repente, ela fez a coisa mais estúpida, mais inesperada, mais terrivelmente detestável que ela poderia fazer naquele momento.

Ela o beijou.

Por um minuto, eu fiquei totalmente imóvel. Não conseguia me mexer de maneira alguma. Aquela sensação estava mais forte do que nunca, mas não era raiva o que eu estava sentindo, agora eu sabia. Na verdade, eu não fazia ideia do que era aquela sensação, só sabia que era extremamente dolorosa. Excruciante. Insuportável.

- Eu devia saber - disse de repente uma outra voz. Uma voz que não pertencia nem ao Lucas, nem à Clarice, nem à mim.

Era a voz do Samuel.

E de uma coisa eu tinha certeza: nunca tinha visto aquele garoto tão furioso. Ele estava parado em frente à casa do Lucas, provavelmente para onde estava indo antes de presenciar aquela cena desagradável.

Seus punhos estavam cerrados com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos. Seu rosto estava vermelho-vivo. Teria sido algo muito engraçado de se ver em qualquer outra ocasião, menos aquela.

Esperei que ele fizesse alguma coisa, qualquer coisa, desde esmurrar a parede até arrancar a cabeça do Lucas fora. Mas ele não fez nada disso.

O Samuel simplesmente se virou e saiu andando a passos largos sabe-se lá para onde, menos para a casa do Lucas.

- Samuel... - a Clarice chamou, com lágrimas nos olhos. Mas ele não se virou. Lucas abriu o portão e saiu correndo atrás dele.

Eu estava tão entretida na cena que não me dei conta de que estava na ponta dos pés, e a cadeira meio torta.

De repente, a cadeira se virou e eu caí com um barulho alto de algo quebrando, e eu tinha certeza de que não era a cadeira.

Uma dor lancinante me invadiu vinda do meu tornozelo esquerdo, mas eu a ignorei por um momento, enquanto corria para dentro de casa antes que alguém se desse conta do que havia ocasionado o barulho.

E naquele momento eu não soube identificar qual dor era a mais insuportável.

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