terça-feira, 7 de outubro de 2014

A garota da minha vida - Capítulo 4

 Capítulo 4

LUCAS

Autor: Thales Mendes

A vida às vezes nos reserva situações tensas. E não tô falando de situações extremas, como assaltos, ou acidentes, ou coisas bastante traumáticas desse tipo. Tô falando de situações do dia-a-dia mesmo, que acontecem com todos nós, e que só não parecem cenas de filme porque roteirista nenhum consegue prever coisas desse tipo. Mas elas acontecem.


Olha só a minha situação: estou na garagem da Lana, vocalista da banda do meu melhor amigo, o Samuel. Ele me trouxe aqui e, cara, ele está simplesmente pirado hoje. Eu o conheço há bastante tempo, e poucas vezes o vi desse jeito: o Samuel parece uma bomba prestes a explodir, e olha que já explodiu umas duas ou três vezes no caminho até aqui. Dá pra entender, porque ele acabou de terminar um namoro de três anos com a Clarice. Mas ele não precisava vir gritando palavras sem sentido na rua e assustando o pessoal porque, bom, isso é constrangedor, e além de tudo ele poderia matar de susto algum casal de velhinhos.

E é meu papel, como melhor amigo, escutá-lo. Aliás, ainda bem que só eu (e os velhinhos) o escutei: se ele fala aquelas coisas pra Clarice, acho que eles nunca mais voltam a namorar.

Ah, e vale lembrar que essa Clarice é a mesma por quem meu coração tem batido mais forte nos últimos anos. Enquanto ele gritava na rua, não pude deixar de pensar em como seria irônico se eu escolhesse aquele momento para dizer “ei, Muca, tô apaixonado pela sua namorada, cara”. Era capaz de ele arrancar minha perna fora.

Eu sei que, quando o Samuel está assim, não há remédio melhor do que um ensaio com a banda dele. É como uma terapia em que ele pode fazer o barulho que quiser por horas, e de onde sai parecendo um anjo. É por isso que, quando falou do ensaio, eu resolvi acompanhá-lo. Ele soltaria os cachorros em mim, chegaria ao ensaio, tocaria guitarra até os dedos sangrarem, e pronto, voltaria ao normal.

Aí, enquanto a gente espera o ensaio começar, quem aparece? A Clarice. Quando vi aquela garota na porta da garagem, a primeira coisa que pensei foi em ir andando até a Lana, puxá-la pelo braço e dizer “Você tá completamente maluca?”. Na verdade, não: a primeira coisa em que pensei foi “Meu Deus do céu, que garota maravilhosa”, porque a Clarice, que já se destacava normalmente, parecia ter se superado com aquele vestido mais curto do que o normal e aqueles cabelos meio molhados caindo nos ombros. Mas, como eu normalmente escondo meus primeiros pensamentos sobre a Clarice, aquela coisa toda do papo com a Lana foi realmente o primeiro pensamento racional que tive.

E eu ia mesmo até ela. Só que, quando o Samuel a viu, e arregalou ainda mais os olhos, parece que o tempo parou: todo mundo na garagem prendeu a respiração, incluindo o Michelangelo, o gato da Lana, que parecia sacar o que estava rolando.

E aí, nesse ambiente em que até um respiro seria ouvido, onde o Samuel olha pra Clarice, a Clarice olha pra Lana, a Lana olha pra mim, e eu olho pro meu cadarço, o que acontece? A Clarice cai. Pois é. Ela cai. Do nada, fecha os olhos, vai tombando pra frente e PAM, bate no chão.

Teria sido engraçado, se não fosse trágico. Todo mundo arregalou os olhos diante do tombo inesperado e, por alguns segundos, ninguém pareceu capaz de se mexer. Até que o Michelângelo soltou um “miau”, a Lana deu um grito aflito e disse “Pelo amor de Deus, alguém faz alguma coisa!”.

Eu comecei a andar até a Clarice, pensando no que poderia fazer pra ajudá-la, mas não foi preciso. De repente, alguém passou por mim com a delicadeza de um tornado, e eu já conhecia aquele tornado há tempo suficiente para me surpreender com a cena: o Samuel pegou a Clarice no colo como se ela não pesasse mais do que um caderno, se certificou de que o vestido dela não estava mostrando demais, e levou-a pra cima, seguido de perto pela Lana.

- É, bom, eles provavelmente vão saber o que fazer – disse o Ben, tentando se acalmar. – Não deve ser a primeira vez que a Clarice cai do nada, né?

- É, aquela garota é toda estranha – disse a Emily, dando risada.

Eu tive vontade de dizer que a Clarice não é estranha, que ela simplesmente tem um problema de pressão baixa quando ficava nervosa, e que isso é até mais normal do que se imagina, e que não tem por que dar risada disso, e que estranha, na verdade, é a Emily. Mas aquela garota me dava arrepios e eu desconfio seriamente que ela anda treinando arremesso de baquetas, pra ver se consegue me acertar à distância, então preferi ficar quieto. Ela não parece gostar muito de me ver. A recíproca é verdadeira.

Passados alguns instantes, o Samuel reapareceu, com a cara fechada. Sem falar com ninguém, ele cruzou a garagem, pegou a guitarra, e se virou pro resto da banda e fez cara de “e aí?”. Todo mundo entendeu o recado, e cada um assumiu seu posto. Só faltava a Lana que, da entrada da garagem, me chamou, parecendo aflita:

- Ei, Lucas, posso falar com você?

- Oi, Lana, tá tudo bem?

- Tá. A Clarice tá melhor. Sabe, quando ela fica nervosa, a pressão baixa e…

- Ela desmaia, eu sei.

- Como você sabe? – ela perguntou, desconfiada.

- Ué… acabei de ver, não? – respondi.

- Ah, é. – ela me olhou por um momento, e depois disse: – Bom, de qualquer jeito, você pode dar uma olhada nela? É claro que eu cuidaria da minha amiga, sabe, mas acho que se eu faltar a esse ensaio o Samuel arranca minha perna.

- Tá bom – eu disse, pensando que, mais tarde, talvez pudesse sugerir ao Samuel dar uma acalmada, porque, quando ele está nervoso, algumas pessoas o confundem com um canibal assassino – Mas ela está bem, né? Quer dizer, eu sou péssimo enfermeiro, é capaz de não saber o que fazer se ela…

- Fique tranquilo, ela está consciente, só precisa de companhia – a Lana respondeu, sorrindo, pra depois pôr a mão nos meus ombros, olhar nos meus olhos, e dizer: – E eu acho que você saberia perfeitamente o que fazer.

Aí ela saiu e me deixou sozinho, com cara de bobo.

Dei uma olhada pro Samuel, querendo indicar, com gestos, que eu iria até a sala para ver se a Clarice estava bem. Ele olhou sério pra mim, e só mexeu a cabeça. Não sei se ele tinha entendido o que eu tinha dito, e não sei se eu tinha entendido o que ele tinha respondido, então eu saí da garagem e fui pra sala, do mesmo jeito.

A Clarice estava deitada no sofá, coberta até a cintura, e bastante pálida. Ela me ouviu chegar e, alarmada, se levantou pra ver quem era. Fiquei feliz de perceber que ela pareceu aliviada ao me ver.

- E aí, bela adormecida, tá bem? – perguntei, me sentando no sofá ao lado, e ficando de frente pra ela.

- Depende do que você quer dizer com “bem” – ela disse, constrangida, e eu a achei a garota constrangida mais bonita que eu já tinha visto.

- Bom, você assustou todo mundo com esse lance de chegar no lugar e se jogar no chão, sabe.

Ela riu.

- É, quanto a isso, estou melhor. Acho que estava um pouco nervosa, com o lance do Samuel, e tal… acho que você sabe do que estou falando.

“Claro que eu sei, seu namorado tá desde ontem à noite falando disso”, eu quis responder. Mas é óbvio que ela sabia disso. Balancei a cabeça, esperando que ela fosse contar a própria versão dos fatos. Mas, por algum motivo, ela pareceu engolir o que estava prestes a falar. Ao invés disso, simplesmente falou:

- E o pessoal, se assustou muito lá embaixo?

- Ah, acho que só um pouquinho. Eles são artistas, sabem se aproveitar desse tipo de coisa.

- Ah é? – ela perguntou, piscando – Como assim?

- É, eles estão até falando em escrever uma música sobre isso… – ela me olhou, curiosa, e eu pensei que aqueles olhos eram bonitos demais, mas só disse: – Vão chamá-la de “Desmaio de amor”.

Ficamos em silêncio por dois segundos, até ela começar a gargalhar. Eu ri também, um pouco porque tinha gostado da minha própria piada, e um pouco porque tinha adorado fazer aquela garota gargalhar.

- Você é um besta, Lucas. – ela disse.

Lá na garagem, a banda começou a tocar. Não me surpreendi totalmente com o fato de o Samuel ter assumido o vocal, além da guitarra. Era o jeito que ele tinha para extravasar.

- Mas e aí, você tá bem? – perguntei, pensando em como era estranho tentar manter uma conversa com a Clarice tendo a voz do Samuel ao fundo.

- Bom, na verdade não, né… – ela disse, enquanto ele tocava a introdução de How I wish you were here, do Pink Floyd – Acabei de fazer o maior papel de boba na frente de um monte de gente!

- Não fala isso… – e ele cantava “can you tell a green field from a cold steel rail?”

- Você não entende. Não tô falando do tombo. Quer dizer, não exatamente.

- Não? Então tá falando de quê? – “did they get you to trade your heroes for ghosts?”

- Ah, Lucas, é besteira minha…

- Conta.

- Tá, mas só porque é você – “did you exchange”

- Tá.

-Bom, eu queria deixar o Samuel de queixo caído, sabe. Enquanto vinha pra cá, eu só pensava na reação dele ao me ver. E sabia que ele ia gostar desse vestido – “a walk on part in the war”-  Quer dizer, só queria que ele me achasse linda. E eu, burra, quebrei a cara mais uma vez…

- Você não quebrou a cara, Clarice – “for a lead role in a cage?”

- Não?

- Não. Mesmo pálida, você está linda.

How I wish, how I wish you were here”

- Ah, Lucas… – ela me olhou no fundo dos olhos, e meu coração começou a bater rápido demais. No fundo, alguém cantava que “we are two lost souls swimming in a fish bowl”, mas eu não conseguia me lembrar de quem era aquela voz. Eu só tinha olhos para aqueles olhos bem ali, na minha frente. Ela me disse: – Será mesmo que a gente pode se abrir um com o outro?

Eu fiquei mudo. Segurei o ímpeto de dizer que “sim, você pode se abrir comigo, Clarice, me diz o que te entristece, que eu te digo que você só merece coisa boa. Ah, e, falando nisso, olha só, eu tô apaixonado por você”. Ela me olhava de um jeito diferente.

-EI, O QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO? TÁ TUDO ERRADO!

A voz veio da garagem, mas eu dei um pulo como se o Samuel estivesse atrás de mim. O Pink Floyd tinha acabado, provavelmente alguém tinha errado algum acorde. Aquilo serviu para me trazer de volta à realidade. Pelo amor de Deus, no que eu estava pensando?

- É, eu acho que não, né… – disse, desanimado, respondendo à pergunta dela.

- Pois é – ela disse.

Ficamos em silêncio, um olhando pro outro, com inúmeras frases não ditas entre nós. Era como se eu tivesse mergulhado em balde de água gelada. Tentei adivinhar no que ela estava pensando. Queria que ela subisse um pouco a alça do vestido, porque era difícil olhar praquilo e conseguir pensar em qualquer outra coisa. Eu queria mudar de assunto com a mesma força que queria continuar com o assunto de antes. Ela respirou fundo, pareceu criar coragem, e me perguntou:

- Você acha que ele está certo, Lucas?

Em te trocar por um ensaio? Nem em um milhão de anos, Clarice.

- Ah, eu realmente não sei te dizer isso, Clarice.

- É, talvez não – ela disse, olhando pra mim. – É que eu cansei de ser trocada pela banda, sabe. Quer dizer, acho que mereço mais do que isso do meu namorado, né?

É claro que você merece muito mais, é lógico, como é que você pode me perguntar uma coisa dessas?

- Você conhece o Samuel, né, sabe que ele gosta de você de verdade, mesmo com aquele jeitão dele…

- É o que ele diz, Lucas. Mas eu tô cansada de ter um namorado que é bom com as palavras e péssimo com as ações.

- Eu acho que

você deveria terminar tudo de uma vez por todas.

você deveria conversar com o Samuel. Pela história que vocês têm, sabe, e por tudo que vocês sentem um pelo outro. Quer dizer, qualquer namoro tem seus altos e baixos, né. Com certeza vocês vão se resolver.

Eu poderia jurar que, se olhasse pro meu ombro esquerdo, veria aquele diabinho que sempre tenta levar o carinha pro mal caminho, nos filmes. Ele estava lá, me dizendo coisas como “Ei, Lucas, olha a Clarice na sua frente. Ela terminou o namoro, Lucas. Aliás, terminaram com ela. E você não vai fazer nada? Quer dizer, olha pra esse vestido com as alças caídas. Olha para esses ombros bronzeados. Olha pra essa marquinha de sol no pescoço dela. E olha o jeito que ela está te olhando, Lucas. Quando é que ela te olhou assim na vida? Você tá sonhando com esse momento há três anos! E agora, que ele chegou, vai simplesmente deixá-lo passar? Esquece o Samuel…”.

E era aí que a voz do diabinho morria. Caramba, as coisas seriam tão mais fáceis se ela estivesse com qualquer outra pessoa. Mas era o Samuel.

É mais fácil achar um grande amigo ou um grande amor? Eu não saberia dizer, porque encontrei os dois. Mas, nesse caso, o tempo fazia a diferença: o Samuel era meu grande amigo há mais do tempo do que a Clarice era meu grande amor. E, cara, eu só a conheci por causa dele. Dá pra imaginar o tamanho do traidor que eu seria, se fizesse o que eu queria fazer?

- Você é um ótimo amigo, Lucas – ela me disse, como se lendo meus pensamentos.

Eu não podia continuar ali.

Pedi licença à Clarice, e saí. Saí daquela casa, daquela garagem, daquele ensaio. Eu sentia que estava prestes a explodir.

“Eu sou um péssimo amigo!”, gritei, assustando um casal de velhinhos que passava por perto.

Saí andando, sem saber pra onde, pensando em como seria bom ter uma vida normal, gostar de garotas solteiras e ser um amigo fiel.

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