terça-feira, 30 de setembro de 2014

A garota da minha vida - Capítulo 2

 

CAPÍTULO 2

SAMUEL

Autoras: Hadassa Fentanes e Júlia Barbosa


Eu achava que meu dia não poderia piorar.

Fazia meses desde que a banda teve uma apresentação de verdade, então quando finalmente conseguimos uma, minha namorada decidiu que eu dava mais importância pra banda do que pra ela, e que deveria escolher entre as duas.

Bem, e eu meio que fiz isso mesmo.

Não espere que eu relate aqui a minha vida de forma sentimental. Embora eu e Lucas sejamos melhores amigos, não somos tão parecidos assim. Na verdade, eu diria que ele é o completo oposto de mim.

Enquanto Lucas sempre foi calmo, introvertido, na dele, eu era quem conhecia as pessoas, quem era convidado para as festas, quem saía para tocar em outros lugares, e acabava por arrastar ele junto. Não tínhamos quase nada em comum, a não ser o gosto por videogames (e pelos biscoitos da minha avó).

Sempre que eu perdia a cabeça por algum motivo, era o Lucas quem eu chamava porque ele era do tipo que pensava mil vezes antes de tomar uma decisão e sempre me ajudava a decidir o que fazer.

E foi exatamente isso o que eu fiz.

A campainha tocou.

- Cara, o que aconteceu? - disse Lucas ao entrar.

- Vem jogar – falei, fechando a porta atrás de mim.

- Espera! Como assim? Tá tudo bem? Você me chamou pra vir aqui e agora...  – ele começou a dizer, enquanto me seguia em direção ao quarto.

- Não quero falar sobre isso agora, está bem? – retruquei, me jogando na poltrona e pegando o joystick.

- Mas... – Lucas recomeçou, mas logo parou ao perceber meu olhar de irritação. Sem tirar os olhos de mim, sentou-se ao meu lado e pegou o outro controle – E então, o que vai ser?

- Mortal Kombat, é claro – respondi, pressionando furiosamente os botões.

- É claro – ele repetiu, sem muita convicção.

Começamos a jogar e ficamos assim, em silêncio, durante algum tempo, até que não aguentei mais. Pausei o jogo e comecei a falar compulsivamente:

- Foi ela! É tudo culpa dela! Ela não entende como essa apresentação é importante! Eu simplesmente não poderia faltar ao ensaio e ir ao jantar que ela preparou! E ela terminou comigo porque não pude comemorar nosso aniversário de namoro! Isso é simplesmente ridículo! Ela não entende! É TUDO CULPA DELA! DE-LA!

- Ah... o quê? – perguntou Lucas, confuso.

Inspirei profundamente e soltei o ar devagar. Explicar as coisas desse jeito não daria em nada, só resultaria em mais dor de cabeça.

- O que aconteceu foi que eu não pude ir à casa dela por causa de um ensaio da banda, então ela brigou comigo, dizendo que nunca tenho tempo pra ela, e não é sempre que eu deixo de ficar com ela por causa de um ensaio, só que você sabe que eu não podia perder aquele, temos uma apresentação importante em pouco tempo, e ainda tem muita coisa pra arrumar, então a gente brigou, ela disse que se continuasse assim, seria melhor a gente terminar, então terminamos.

Lucas pareceu tentar assimilar a situação.

- Então – ele hesitou – você falou com ela depois disso?

- Não, eu só... bati a porta e fui embora.

- Isso foi na casa dela?

- É, ontem depois do ensaio, eu passei lá pra me desculpar, porque eu sabia que ela estava chateada, e foi assim que terminou.

- E você está bem com tudo isso?

- Eu pareço bem?

- Você não vai nem ao menos tentar falar com ela?

- Foi ela quem resolveu terminar, não foi? Eu não fiz nada de errado.

- Mas você foi ao ensaio...

- Ah, agora você está do lado dela?

O rosto de Lucas ficou vermelho.

- Não, claro que não! Você entendeu errado! Eu não quis dizer isso, sério!

- Não, desculpa – falei, começando a me acalmar – Eu só estou chateado com tudo isso. Não sei se quero voltar a ver a Clarice tão cedo.

Eu sabia que estava exagerando, mas isso não significava que não devesse estar chateado. Eu namorei a Clarice por três anos, e ela nunca pareceu se incomodar com o fato de eu participar de uma banda e ter que me dedicar a ela. Então, justo agora, ela decidiu que isso atrapalhava nossa vida amorosa. 

Lucas ficou pensativo durante um tempo, depois abriu a boca para falar algo, mas hesitou. Por fim, acabou dizendo:

- Eu posso falar com ela, se você quiser.

- Não, de jeito nenhum. Ela é quem está errada e você não tem nada a ver com isso. Você não tem que falar com ela sobre esse assunto, na verdade, seria melhor que não falasse com ela durante algum tempo. Ela pode achar que estou mandando você fazer as pazes por mim.

Lucas pareceu atordoado.

- Você tem certeza? – perguntou ele, a voz falhando um pouco.

- É, acho que é melhor assim – respondi. Então olhei para o relógio na parede – Ah, é, tem ensaio agora! Já estou atrasado! A Emily vai me matar. Você vem?

- Claro. Tudo bem.

- Mãe! Tô indo pro ensaio! – gritei ao sair pela porta.

Minha mãe se materializou na entrada da cozinha.

- Tá bom. Não chega tarde, hein? – respondeu ela – Oi, Lucas! Você também vai?

- Oi, dona Jéssica. É, eu vou, sim – ele disse.

- Bom ensaio! Ah, passe na padaria e traga ovos quando voltar!

- Está bem, mãe. Tchau – falei, empurrando Lucas porta afora.

Lucas não falou nada durante todo o trajeto de ida, limitou-se a responder com grunhidos e movimentos de cabeça as minhas reclamações. Talvez só estivesse chateado com o que aconteceu, afinal, ele era nosso amigo. Confesso que exigi muito dele ao pedir que parasse de falar com ela.

Mas ainda assim ele concordou para fazer com que eu me sentisse melhor, e ainda ficou me ouvindo tagarelar durante todo o caminho. Pra ser sincero, eu era muito grato por ter um amigo como o Lucas.

A banda se reunia na casa da Lana e do seu irmão, Benjamin, que não era muito longe da minha, estando apenas a um quarteirão de distância. 

Nós costumávamos ensaiar na garagem, que estava sempre empoeirada e cheia de coisas empilhadas em todos os cantos. Para muitos, poderia ser desconfortável, mas para mim, não existia lugar mais aconchegante do que aquele. Eu adorava estar lá, com os meus amigos, rindo, tocando, compondo. Mesmo que não fizéssemos tanto sucesso, mesmo que ninguém além das cidades mais próximas nos conhecesse, mesmo que a nossa banda nem um nome oficial tivesse ainda, eu sabia que era aquilo que eu queria fazer pelo resto da minha vida.

A banda, na verdade, era tudo pra mim. Isso era o que eu pensava até a Clarice aparecer, porque a partir daí, tudo começou a mudar. Eu passei a me sentir o cara mais feliz do mundo, ao lado da garota da minha vida e com a banda dos meus sonhos.

Quero dizer, até eu estragar tudo.

Chegamos lá e encontramos a mãe da Lana, que nos informou que o resto da banda já estava na garagem e esperava por mim, então fomos para lá.

Ah, esqueci de dizer que o pessoal da minha banda não é exatamente o que as pessoas chamariam de “normal”.

- Michelângelo!

- Banda de Garagem!

- Vocês querem calar a boca?

- O que foi dessa vez? – perguntei, elevando a voz acima da gritaria e confusão que se instalara no local.

De repente, todas as vozes se calaram e todos olharam em nossa direção. Lana aproximou-se e me abraçou, dizendo:

- Eu soube do que aconteceu! Eu sinto muito! Vocês eram um casal tão fofo e meigo, pareciam coelhos, de tão fofos e meigos! Eu tive um coelho uma vez, só que ele morreu. Mas vocês não morreram, e isso é bom.

- Valeu, Lana, por ver sempre o lado bom da situação – eu disse, sarcasticamente. 

Lana não pareceu perceber o sarcasmo e abriu um sorriso encorajador. Seus dentes muito brancos contrastavam com sua pele escura, como a de seu irmão, seus olhos negros pareciam radiantes como sempre. Seus dentes exibiam um aparelho novo multicolorido. Era a terceira vez que ela mudava de aparelho naquela semana.

- Você trocou a cor desse treco? De novo?

- Precisava combinar com as minhas mechas – respondeu ela, sacudindo a cabeça para os lados.

- Ela não aprende, já tentei falar com ela – suspirou Ben. O pobre coitado deveria receber um prêmio por aturar sua irmã mais nova.

- Ei, esse ensaio começa ou não? – bufou Emily em um dos cantos.

- Nós estávamos discutindo o nome da banda antes de vocês chegarem – disse Lana, então pareceu reparar em Lucas pela primeira vez – Ah, oi, Lucas!

Ele limitou-se a dar um aceno de cabeça.

- Acontece que a minha querida irmãzinha quer colocar o nome da banda como sendo o nome do gato bizarro dela – reclamou Benjamin.

- É muito melhor do que “Banda de Garagem” – ela retrucou, então colocou um braço ao redor dos meus ombros e o outro ao redor dos de Lucas e nos arrastou para dentro enquanto falava – Venham! Venham!

- São as nossas origens, cara! – disse Ben, abrindo os braços em um gesto amplo, indicando o local ao redor – Temos que lembrar de onde viemos quando não estivermos mais aqui.

Ele se aproximou e me cumprimentou.

- Meus pêsames, cara. A propósito, eu nunca gostei dela, se é isso que você quer ouvir.

- Na verdade, não quero falar sobre isso agora.

- Tanto faz – retrucou Emily, revirando os olhos – Dá pra ser ou tá difícil?

O gato preto e esquelético de Lana, Michelângelo, apareceu e se deitou aos pés de Emily, que o chutou para longe.

- Tira esse gato daqui - ordenou ela - Ele vai atrapalhar a gente.

- Venha, Michelângelo, vamos para dentro – disse Lana, pegando o gato no colo e acariciando seu pelo enquanto saía pela porta.

- O que essa coisa está fazendo aqui? - perguntou Emily, indicando Lucas com a baqueta. Ela era a baterista da banda, mas não exatamente uma pessoa agradável. Sua pele muito branca, seus cabelos lisos tingidos de preto e sua maquiagem escura faziam com que a garota mais parecesse algo saído de um filme de terror. Ela me dava arrepios. A garota parecia ter ódio de todas as criaturas vivas, principalmente de Lucas – Nós combinamos de não trazer ninguém para os ensaios, principalmente esse garoto.

- Oi pra você também – replicou Lucas.

- Oi, eu fiz Lasanha – disse a mãe de Lana, aparecendo na janela – Alguém quer um pedaço?

O ruim de não termos um lugar apropriado para ensaiar era justamente esse, todo mundo entrava e saía quando bem entendia. Isso, na maioria das vezes, só dava mais trabalho e dor de cabeça. Mas ainda não tínhamos sucesso o suficiente para bancarmos uma sala acústica e instrumentos novos, então, por enquanto, o jeito era improvisar e tentar ver o lado bom disso tudo. No nosso caso, o lado bom se chama Ana, e ela adora encher a gente com tudo que encontra na cozinha dela. E como eu fico com isso? Ah, cara, comer é comigo mesmo.

- Não, mãe, estamos bem – respondeu Benjamin.

- Eu quero! – respondi.

- Eu vou buscar – disse ela, com um sorriso enorme no rosto.

Michelângelo, o gato, voltou sozinho pela porta aberta e ronronou para Lucas, que afagou a sua cabeça.

- Esse gato me assusta. Lana deveria ter tirado ele daqui – reclamou Ben.

- Aliás, cadê ela? – perguntei.

- Cheguei! – cantarolou Lana ao entrar.

Mas ela não estava sozinha.

Havia outra pessoa com ela. Lana puxou a garota pelo braço. 

Seus cabelos castanhos caíam-lhe sobre os ombros. Seus olhos arregalaram-se ao me ver.

Aquela era a última pessoa que eu gostaria de encontrar naquele momento.

Era Clarice.


Nenhum comentário :

Postar um comentário