segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A garota da minha vida - Capítulo 10

Capítulo 10

LUCAS

Autor: Thales Mendes


Ainda tô tentando entender como um dia pode ser, ao mesmo tempo, o melhor e o pior da minha vida.


A PARTE BOA:

Acordei com o Samuel aqui na porta de casa. Me surpreendi, claro, porque nossa última conversa tinha terminado com ele me perguntando se eu estava ficando com sua ex namorada, e eu desligando o telefone na cara dele, bravo porque é claro que eu não tinha ficado com a Clarice, e culpado porque é claro que eu queria ficar com ela.

Mas ele tava com cara de quem queria pedir desculpas. Eu conhecia o Samuel bem demais pra não reconhecer aquela cara, que eu já tinha visto algumas centenas de vezes. “Foi mal, Luquinhas”, “Você me conhece, irmãozinho, às vezes eu faço umas besteiras”, e coisas desse tipo.

Mas, pra minha surpresa, ele parecia nem se lembrar da nossa conversa por telefone:

- Aí, irmãozinho, você não vai acreditar no que eu tô pra te contar.

O sorriso dele era tão grande que, por um momento em que meu estômago ameaçou pular pra fora do meu corpo, eu constatei o óbvio: ele e a Clarice tinham voltado. É claro que tinham, né? Eles foram feitos um pro outro, afinal de contas, e aqueles meus momentos recentes com ela não tinham passado disso: momentos. Ela devia estar confusa, ou então eu mesmo estava, achando que aquilo tudo de fato tinha significado alguma coisa. Ela vindo na minha casa, a gente rindo, conversando, ela criticando minhas músicas, me mostrando as músicas dela, e dividindo o fone comigo. A vida pareceu passar em câmera lenta naqueles momentos, e mais de uma vez me perguntei se eu não deveria ter tomado algum tipo de atitude. E, é lógico, nunca criei coragem pra tomar atitude nenhuma. E agora era tarde demais.

- Lucas? Você tá bem, cara?- o Samuel me perguntou, estalando os dedos na minha frente e me despertando dos meus devaneios.

- Oi. Opa. Tô sim, cara. E aí?

- Tô ótimo! Mas aí, me pergunta: “Muca, por que essa felicidade toda?”. Pode perguntar.

- Vocês voltaram, né.

- Oi? – ele perguntou, levantando as sobrancelhas.

- Oi? – eu respondi de volta, surpreso por ter pensado em voz alta.

- O que você disse? – a confusão dele me pareceu sincera, e uma luzinha de esperança brotou no meu estômago. Talvez tudo não estivesse perdido, afinal.

- Não, nada. Mas então, por que você tá tão feliz? – perguntei, tentando mudar de assunto o mais rápido possível.

- O Tuca, cara!

- Que Tuca?

- O Tuca! Aquele produtor maneiro, sabe?

- Sei! – o Samuca e o Ben viviam idolatrando esse tal de Tuca, um cara bem estranho, que aparecia de vez em quando na mídia por ter revelado umas bandas legais. – O que tem ele?

- Ele vai ao nosso show!

- Como é que é?

Eu mal tinha saído da cama, ainda estava sem camisa e com o cabelo todo despenteado, e já tinha acontecido tanta coisa que eu devia ter pressentido o quanto aquele dia seria cheio de surpresas. De qualquer forma, mesmo com os gritos desafinados do Samuel, eu consegui entender: ele e o Ben tinham, de algum jeito, conseguido enviar uma música deles pro Tuca, que tinha curtido o som e agora queria vê-los no show. Era, de fato, uma notícia daquelas, e eu estaria sorrindo e parabenizando o Samuel mesmo se ele e a Clarice tivessem voltado. Eu sabia que aquele era o sonho da vida dele.

É engraçado como as notícias boas servem pra acalmar o ambiente. Quem visse a gente conversando, ali na sala de casa, dando risada e brincando um com o outro, jamais desconfiaria daquela conversa estranha na noite anterior. Conversa que me deixou acordado quase a noite inteira.

O próprio Samuel parecia não se lembrar daquilo tudo, e era como se a vida tivesse finalmente voltado ao normal. É claro que não tinha voltado.

- Ei, Samuel.

- Diga, irmãozinho.

- Acho que agora é uma boa hora pra vocês pensarem num nome pra banda, né?

Ele me olhou por um momento, e depois nós dois caímos na gargalhada. Eu nem imaginava que, dali a algumas horas, ele estaria em pé no jardim de casa, prestes a me dar um soco.

Mas era bom vê-lo daquele jeito. Ele parecia iluminado, como se tivesse certeza de que nada de ruim pudesse acontecer: eles conquistariam o Tuca e, dali pra frente, quem sabe? “Talvez a gente fique sem se ver, irmãozinho. Tô falando de turnê, e gravação em estúdio, e todo o resto, saca?”. Quando o assunto era a banda, o Samuel era o cara mais otimista que eu conhecia.

Ao mesmo tempo, uma coisa me chamava a atenção: não tinha sinal da Clarice naquela conversa. Quer dizer, ele chegou mesmo a dizer que aquele era o melhor momento da vida dele e que ele nunca esteve “tão feliz, irmãozinho”. Isso me deixava com uma pulga atrás da orelha: é claro que eu entendia toda a felicidade do Samuel, mas, se fosse eu, teria ido dividir toda essa felicidade com a garota que eu amo. E foi pensando nisso que eu puxei o assunto:

- Muca, a Clarice tá sabendo disso?

- Sei lá, Lucas. Deve estar. Quer dizer, a Lana deve ter falado com ela.

- Você não disse nada?

- Eu? Por que eu diria alguma coisa?

Talvez porque ela gostaria de ouvir isso de você. Porque ela esteve te apoiando nesses últimos anos. Porque ela torça por sua felicidade, afinal de contas.

- Hum, sei lá. Talvez ela goste de saber, né…

- Já disse, a Lana vai falar pra ela. Escuta, cara, não vamos falar da Clarice, ok? Eu tô feliz demais pra me aborrecer com isso.

“Você se importaria se eu a convidasse pra sair?”. Eram essas as palavras que dançavam na minha cabeça. E aquele parecia o momento perfeito pra dizê-las. Quer dizer, ele não parecia se importar mais com a Clarice. Acho até que ainda gostava dela, mas talvez goste muito mais da banda, e esse tenha sido o problema dos dois, afinal de contas.

Mas até pra ser racional a gente precisa ter coragem. Eu sabia que aquilo seria o mais certo a fazer, falar com o Samuel ali, só nós dois, me abrir pra ele e explicar que, nos últimos anos, eu tenho sofrido em silêncio por causa da Clarice e que, agora que os dois não estão mais juntos, talvez seja a hora de me preocupar um pouco com a minha felicidade.

Mas simplesmente não consegui falar nada. De repente, ele se levantou, disse que precisava ir, e saiu. E eu não fiz menção de pará-lo.

A partir dali, o dia passou em flashes. Alguns muito rápidos, como o pessoal da banda indo lá no Squalor pra comemorar as boas novas e tentar chegar a um consenso sobre o nome da banda, o Samuel me chamando pra sentar com eles, pedindo minha opinião sobre cada um dos nomes, a Clarice chegando depois para parabenizá-los.

Por alguns momentos, tudo parecia normal de novo. O Samuel no telefone brigando com a Emily, o Ben rabiscando um monte de planos para o show, a Lana pensando no setlist, e todo mundo animado com o ensaio que estava pra acontecer.

Eu me retirei, como sempre fazia nesses momentos, pra deixar “a banda em paz”. Mas não me retirei sozinho:

- Ei, garçom!

De todos os Ei, garçom que eu recebia no Squalor, o da Clarice era o melhor: eu sabia que ela fazia pra me provocar, mas mesmo assim sempre sorria ao ouvir aquela voz me chamando. Aquela voz era linda. E, por falar em linda, ela estava com os cabelos soltos naquela tarde.

- Oi. Tudo bem?

- Tudo, e você? – ela me respondeu, sorrindo.

- Tudo bom. Legal pra banda, né?

- Legal demais! Fiquei muito feliz quando soube!

- Pois é, eu também. Quem te contou?

- A Lana. E pra você?

- O Muca.

- Ah, imaginei. – ela disse, meio desanimada – Ele parece estar bem feliz, né?

- É, tá um pouquinho sim – eu disse, sem saber exatamente o que deveria responder.

- Que bom pra ele.

Ficamos alguns segundos em um silêncio constrangedor. Eu queria que ela se abrisse comigo, e queria dizer algumas coisas pra ela. Mas não sabia como fazer nenhuma das duas coisas, então só fiquei ali, parado, na esperança de que meu olhar pudesse dizer “conte comigo”. Ela me olhou de volta, aqueles olhos um pouquinho puxados, e eu senti vontade de puxá-la pela cintura e sair dali.

- Então, quer sair daqui? – ela me perguntou, e eu não pude deixar de observar como são maravilhosas essas coincidências da vida.

A gente voltou pra casa conversando sobre besteiras e, aos poucos, todo o resto foi sumindo das nossas cabeças. E, por mais que eu gostasse da banda, e por mais que gostasse de cada um dos seus integrantes, tirando a Emily, eu sentia meu mundo muito mais leve quando estávamos só a Clarice e eu. Era como se, por esses instantes, a gente se esquecesse de todos os problemas, todas as complicações, e vivesse num sonho em que mais ninguém existia. Cara, que sonho bom!

E parecia que era assim pra ela também. A Clarice, que parecia tão contida no Squalor, estava solta, sorrindo pra qualquer coisa, abrindo a minha geladeira como se fosse de casa, deitando na minha cama (e deixando o melhor cheiro do mundo nos meus lençóis) e fuçando em fotos antigas, dizendo coisas como “Esse é o pequeno Lucas? Que fofinho!”. Enquanto isso, eu ficava sentado, meio atônito, tentando entender a dimensão de ter aquela garota ali. Era, ao mesmo tempo, uma explosão e um sufoco, uma tentação sem tamanho e uma frustração maior ainda: o meu maior sonho no meu quarto, e eu sem poder fazer nada.

As horas pareciam voar quando eu tava com a Clarice. Por isso que, quando eu olhei pela janela e vi o dia já escurecendo, nem me surpreendi.

- Ei, será que não vai ficar tarde pra você voltar pra casa?

- Tá me mandando embora, garoto? – ela perguntou, sorrindo pra mim.

- Claro que não. Só fico preocupado – respondi, coçando a cabeça.

- Então deixa de ser tão preocupado por um momento e vem ouvir essa música.

Eu preciso te dizer o que ela quis dizer com o “vem ouvir essa música”: não era simplesmente “olha, presta atenção na música que vai tocar agora”. Ela tava deitada na minha cama, esticando um dos fones de ouvido pra mim. E eu, sem pensar, já me vi andando até a minha cama, e me deitando do lado dela. Pus o fone, e uma música desconhecida começou a tocar. E a música dizia que eu pensava ter uma bicicleta e pedalar até a tua rua, dizer que ainda sou tua. E aí eu olhei pra ela, ali, em primeiro plano, com o meu quarto desfocado ao fundo,  aquele perfume me embriagando, o ar quente da respiração dela batendo no meu rosto e, cara, se aquilo não era a definição do paraíso, eu não sei o que pode ser.

E a música dizia que sem eu aí não tem ninguém pra te aquecer quando ela me disse:

- Nunca ouvi essa música com ninguém.

Não sei se aquilo foi um convite, mas eu aceitei. Tirando uma coragem que nunca achei que teria, me precipitei pra ela, apressado, sem jeito, e com o coração tentando desesperadamente sair do meu peito. E, como eu jamais pensei que faria, ela me beijou de volta. E, em algum lugar, eu tava ouvindo música, e fogos, e sinos, mas aquilo era estranho, impossível até, porque o fone já tinha caído do meu ouvido, e tava jogado por ali, entre os lençóis. Aquele beijo era bom de um jeito inimaginável, e eu só queria ficar nele, mesmo sem conseguir respirar, porque temia que, se abrisse os olhos, iria acordar de um sonho.

Quando eu finalmente os abri, nervoso, percebi que ela continuava ali, sorrindo de volta pra mim. Naquele momento, ao constatar que ela não tinha me deixado, eu entendi o que é a felicidade.

Aliás, eu tenho umas coisinhas pra dizer sobre a felicidade: o fato é que, uma vez que você a experimenta, fica difícil demais não querer prova-la de novo. E de novo. E de novo. Até que você se acostuma, sabe, mas não de um jeito ruim: é que, como você já sabe o que é a felicidade, qualquer coisa que não seja a felicidade vai te deixar mais triste. Deu pra entender?

Por exemplo, o que você faz se, de repente, a felicidade te interrompe, te empurra, te olha com uma cara de choro e diz:

- Lucas, o que a gente tá fazendo?

E depois sai correndo.

A PARTE RUIM

Ela desce as escadas, correndo, e eu vou atrás dela. Tento me fazer de surpreso e pensar “o que deu nela? Enlouqueceu?”, mas eu sei exatamente no que ela está pensando. Sei, porque eu também estou pensando nele. Caramba, o que foi que a gente fez?

Ela bate a porta, e parece que tá tudo desmoronando. A felicidade de alguns instantes já desapareceu. Alcanço a Clarice no jardim, e puxo-a pelo braço. Ela não resiste, mas me olha chorosa, com lágrimas escorrendo:

- O que estamos fazendo, Lucas? O que tudo isso significa?

Aquela pergunta me atingiu em cheio.

- Você sabe o que isso significa – eu disse, tentando parecer calmo, e torcendo para ter razão, porque, se ela não soubesse o significado de tudo aquilo, então as coisas estavam pior do que eu imaginava – Você sabe o que eu sinto.

Eu sentia os anos de silêncio gritando dentro de mim. Já tinha imaginado essa conversa várias vezes, mas ela nunca acontecia daquele jeito, no jardim de casa, com a Clarice chorando. Ainda assim, não valia a pena me esconder mais. Não depois do que tinha acabado de acontecer.

- Eu não acho que o Samuel…

- A questão não é o Samuel – eu a interrompi, calmo, tentando convencer a ela e a mim mesmo – A questão é o que você sente.

“O que você sente, Clarice?”. Era a pergunta que tava no ar, mas que eu não me atrevia a fazer, porque tinha muito medo da resposta. Fui me aproximando, enquanto ela me olhava, e uma mistura intensa de sentimentos tomou conta de mim. “Ela tá confusa” e “Por que ela tá confusa?” e “Ela sabe que eu gosto dela!” e “Será que ela gosta de mim?” e “A gente acabou de se beijar!”. Eu me aproximava, sem saber direito o que falar, e ela tomou a iniciativa: me beijou e, entre aquelas lágrimas, eu senti a euforia crescer em mim de novo. O mundo é bonito, por mais que a gente tenha tempestades e terremotos às vezes, né?

- Eu devia saber.

E aí jogaram um caminhão de gelo na euforia.

O Samuel estava ali, no meu jardim, quem sabe há quanto tempo. Ele parecia a ponto de explodir e, por alguns instantes, eu pensei que ele ia me bater. Acho que ele também tava pensando nisso, porque veio na minha direção, com um olhar de ódio. Se era pra mim ou pra Clarice, eu não sei, mas bem que poderia ser pra nós dois. Mas aí, simplesmente se virou e saiu andando.

- Você fica aqui, tá? Vai pro meu quarto, toma uma água, sei lá – eu disse pra Clarice, antes de sair atrás dele.

Tava tudo escuro lá fora, mas eu conseguia ver o borrão que era o Samuel, chutando as coisas invisíveis na rua, dando socos no ar, e se afastando rapidamente. Pela segunda vez naquela noite, tive que correr mais do que esperava pra alcançar alguém:

- Samuel, espera! – eu gritava, enquanto me aproximava dele – Você quer parar? Vamos conversar!

- Não quero conversa com traidor – ele gritou em resposta, e qualquer um que o ouvisse podia dizer que aquilo era verdade, só pela raiva que ele tinha na voz.

- Me deixa explicar! – eu pedi, desesperado.

- Explicar o quê? Como você ficou com minha garota? Como aproveitou o fim do nosso namoro pra dar em cima dela? – embora eu estivesse me aproximando, ainda não conseguia vê-lo. Ele falava de costas pra mim.

- Não é nada disso, cara!

- Não mente pra mim, eu não sou otário! O Ben já tinha me falado tudo!

- O Ben? O que tem o Ben? – agora eu estava tão perto que nem gritava mais.

- Não te interessa.

- Ei, espera Samuel! ESPERA AÍ!

Puxei-o pelo ombro, mas não deveria ter feito isso. Quando ele se virou pra mim, acertou um soco em cheio no meu rosto. Imediatamente fiquei zonzo, senti meu nariz sangrando e desequilibrei. A rapidez daquilo tudo me assustou, e o susto me paralisou. Se eu conseguisse pensar em qualquer coisa, talvez pensasse em como as coisas mudam rápido: eu tinha tido meu encontro com a felicidade apenas vinte minutos antes, e agora meu rosto tava cheio de sangue.

Usei minha camisa pra tentar me limpar, enquanto sentia minha cabeça prestes a explodir. Tentei me reerguer, mas o mundo girou, eu cambaleei e caí no chão de novo. Fiquei com medo de que o Samuel fosse me bater de novo, mas ele simplesmente ficou ali, parado, me olhando.

E nada, nem o soco, nem a queda, doeu mais do que as palavras que ele me disse:

- Eu pensei que você fosse meu amigo, Lucas. Jamais esperaria uma traição dessas. Jamais faria isso com você.

E saiu andando, me deixando ali, deitado no chão.

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